experiência crítica

intervenções críticas sobre as produções audiovisuais brasileiras contemporâneas

sábado, novembro 25, 2006

Árido Movie, de Lírio Ferreira (Brasil, 2006)

O contraste entre o real e o virtual na representação do sertão

Árido Movie é um filme ambicioso. No intuito de se fazer emblema de um cinema forte pernambucano, Lírio Ferreira (Baile Perfumado, 1996) evoca a tradição e o olhar cinemanovista ao retratar certas mazelas da sociedade nordestina. O objetivo inicial é atingido: a fita obteve seis prêmios neste 10º Cine Pernambuco-Festival do Audiovisual – melhor filme, direção, fotografia, montagem, ator coadjuvante (Selton Mello) e prêmio da crítica. Porém o resultado não é condizente com essa pretensão e a nuance social torna-se ruído numa história centrada no confronto do protagonista com a sua terra natal.

A princípio, vemos Jonas, personagem desfocado, sem identidade, que trabalha em São Paulo numa emissora de televisão e vive imerso na atmosfera digital falando sobre a previsão do tempo de espaços que, para ele, são virtuais. O ambiente onde nasceu e do qual se distanciou, o Vale do Rocha, no sertão pernambucano, está inserido nesse mapa, que deixa de ser virtual a partir do momento em que a família, motivada pela morte de seu pai, exige sua presença. Assim, o espaço do qual tratava com distância torna-se forçosamente real; as nuvens deixam de ser digitais tornando-se visíveis e opressoras.

A mudança do código de valores da metrópole urbanizada, para o universo do sertão, aparece explícita na dialética entre civilização e barbárie. A cultura da violência alimentada por um sistema patriarcal e coronelista calcado no desejo de vingança; a dizimação e a marginalidade do indígena; a venda e o consumo ilegais de maconha; o banditismo local; o uso político da água; o misticismo e a formação de líderes míticos do povo são algumas das características relativas à terra natal do protagonista. Essa idéia de contraste e inversão de valores que permeia todo o filme – interior e capital, aridez e água, branco e mestiço, misticismo e racionalidade – dá nome a um dos estabelecimentos de Zé Elétrico: “Oposto”.

Não existe afinidade de Jonas com a família de sangue, preocupada em revê-lo não por saudosismo, mas para designar-lhe a tarefa de fazer justiça à morte do pai matando seu assassino (a qual recebe com indignação e se recusa a cumprir). Tampouco há afinidade com os antigos amigos, entre os quais, uma ex-namorada, que passam todo o tempo, como diz o jargão, em busca de “sexo, drogas e rock’n roll”. Nem as mesmas drogas são compartilhadas. Enquanto estes se deliciam fumando maconha, Jonas, num momento de extrema tensão, aspira cocaína, droga cara associada ao universo yuppie, do qual ele mais se aproxima.

O olhar distante do protagonista para o código de valores de Rocha se identifica com o de Soledad, videomaker também alheia àquele contexto. Não por acaso, cada um a seu modo, trabalha na esfera da representação, da artificialidade da imagem proporcionada pelo vídeo. Mas, ao contrário de Jonas, atormentado pelo contato com as suas raízes, Soledad se deslumbra com os elementos da cultura nordestina, entre os quais, o discurso vazio do líder Meu Velho que, posteriormente, tutelará a sua exposição. A solidão expressa no nome da artista não deixa de materializar um sentimento que também é do protagonista.

Contudo, é por meio da visão do povo indígena, expressa nas palavras de Zé Elétrico, que Jonas começa a compreender as leis do sertão. E, mais do que isso, a partir do encontro com esse elemento, situado na trincheira social oposta à de sua família de sangue, o filme esboça uma catarse do personagem. Este passa por uma espécie de ritual ao beber um chá purificador que o faz entrar em transe e vislumbrar a sua própria morte, aqui, tomada como símbolo aparente da superação da dor.

O ritual catártico estaria completo e se constituiria como etapa fundamental de transformação psíquica de Jonas, se não fosse a ambigüidade contida na seqüência final (abrupta e que, em parte, decepciona o espectador pelo seu contraste com o restante do filme). Por um lado, a constituição da família aparece como resultado da superação do trauma do protagonista. Por outro, a presença de ambos na exposição concebida por Soledad, em que vídeos e instalações tendem a representar o Nordeste artisticamente, sugere a permanência do status quo, ou seja, da visão distanciada e virtualmente construída de um espaço que não deixa de ser figurativo. A imagem de Jonas, envolvida pela luz azulada da exposição, inspirada no ambiente da casa de Meu Velho e não na luz estourada do sol a pino –, caracteriza o seu retorno para essa atmosfera digital na qual estava emoldurado.

Percebemos, entretanto, um desequilíbrio na narrativa que, embora focada na perturbação de Jonas, por vezes se desloca de forma digressiva para retratar questões ligadas à engrenagem sócio-política e econômica do sertão, sem se aprofundar nelas. O enredo se enfraquece em face da pretensão de ser também um filme de cunho social sobre a realidade nordestina, tal como expresso nas citações e inspirações estéticas de fitas do Cinema Novo, como Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), na câmera que, durante os créditos, desloca-se do mar para o litoral, e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), pela luz amarela estourada da fotografia de Murilo Salles. Destoa dessa intenção engajada o ar burlesco conferido ao núcleo dos amigos maconheiros, até mesmo pelo fato de que o título da referida obra de Nelson Pereira, que inspira esteticamente todo o filme, torna-se uma infame piada para o grupo.